Por Davis Sena Filho — Blog Palavra Livre
“Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós,
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz”.
Abre as asas sobre nós,
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz”.
(Do Hino da Proclamação da
República)
Há alguns meses subi dois morros da cidade do Rio
de Janeiro. O morro do Juramentinho e o mais conhecido deles, o morro do
Juramento, ambos localizados nos bairros suburbanos de Tomás Coelho e Vicente
de Carvalho. O Juramento era controlado, na década de 1980, pelo famoso
traficante Escadinha, que em 1985 fugiu do presídio da Ilha Grande de helicóptero
e foi assassinado a tiros de fuzil na Avenida Brasil em 2004 após cumprir longa
pena na prisão. O dia estava calor, o que se transformou em uma dificuldade
adicional para subir os morros.
Eu estava a acompanhar a comitiva de técnicos,
geógrafos e engenheiros da Secretaria de Habitação do Município do Rio de
Janeiro. A intenção era verificar as condições das casas de moradores, bem como
saber da presença dos serviços públicos prestados às duas comunidades carentes,
além da fiscalização de obra de contenção de encostas no morro do Juramentinho,
cujos operários são homens contratados na própria favela, que recebem materiais
de segurança e logístico adequados para trabalhar.
Conforme caminhávamos em direção à Associação de
Moradores do Juramentinho, as pessoas — um número maior de mulheres do que de
homens — nos rodeavam, o que as levou a nos acompanhar até a associação. Ao
chegarmos lá, ouvimos as reivindicações e as queixas, de forma que tudo foi
anotado por um engenheiro. Além das obras de encostas para evitar
desmoronamentos com a chegada das chuvas do verão, está a ser realizado o
trabalho de coleta de lixo, de desobstrução de canaletas e de avaliação das
condições físicas das casas, no que concerne à segurança das pessoas.
No decorrer da visita à comunidade, o secretário
municipal de Habitação anunciou que o programa Morar Carioca, que é similar ao
Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal, vai ser implementado no morro, que
tem cerca de cinco mil habitantes. As pessoas que estão a morar em casas em situação
de risco vão ter prioridade, bem como, se tiver que sair imediatamente dos
lares, vão ter o direito de receber o aluguel social, de maneira que elas
possam com o dinheiro alugar uma casa para morar. Saímos do Juramentinho e
fomos para o morro do Juramento.
O Juramento tem uma população de 70 mil pessoas. A
favela é muito maior que a anterior. A pobreza dessas pessoas me comove, porque
as dificuldades são inúmeras. A vida é
dura para esses cidadãos humildes; muitos deles desempregados e que sonham com um
emprego. Apesar de o índice de empregabilidade no Brasil ser alto existe a
questão da mão de obra especializada, que está a ser resolvida por intermédio
das escolas técnicas, mas que demanda tempo. Os idosos são um caso à parte.
Subir o morro diariamente é difícil e complicado. E descê-lo também. Tem de ter
disposição e força. O suor é abundante. Escorre pelo meu rosto e queima os meus
olhos, o que me leva a pegar a manga da minha camisa para secá-los.
Dirijo-me a uma idosa e a cumprimento. Ela está
curiosa. Sabe que eu não sou morador da favela. Digo-lhe que estou a acompanhar
os técnicos da Prefeitura, que sou jornalista e, quando ia completar a frase, a
anciã me interrompe e exclama: “Graças a Deus, meu filho… A minha casa está
caindo e eu tenho medo e não aguento mais. Eu fui procurar o Wagner Montes, lá
no programa dele. Esperei para ser atendida, recebi uma senha, mas até hoje não
fui atendida. Eu moro em cima, a minha filha e seus filhos embaixo. Está tudo
caindo, aqui tem muito lixo, esgoto e mato... Olha só...”
Eu digo a ela que os técnicos vão se reunir com as
pessoas depois de chegarem ao topo do morro, onde estão implantadas as torres
de energia, que ficam em um descampado, mas que também tem muito lixo. O
Juramento é uma favela que tem uma população grande e carente. Durante o
trajeto, íngreme e escorregadio, percebo que tem esgoto a céu aberto, muita
mata, lodo, lixo e construções abandonadas, que servem de depósito para animais
peçonhentos e ratos. Passo por uma criança que tem no máximo três anos, está
nua e, creio eu, sozinha, porque não vi ninguém por perto a cuidar e zelar por
ela. Tiro um foto, e sigo a andar, devagar, porque meus pés e joelhos estão a
doer.
Os técnicos verificam as canaletas, as condições
das casas, o lixo, a mata e as torres de energia. As chuvas da estação de verão
preocupam. Há no ar um sentimento de pesar por causa da pobreza. Para mim, a
pobreza não é apenas uma questão de condição econômica e financeira. A pobreza
é uma doença, se não for a pior epidemia que vitima a humanidade. Neste caso,
ela viceja e se reproduz pelo labirinto de vielas do morro do Juramento e de
tantas outras comunidades do Rio de Janeiro e do Brasil. São milhões de
brasileiros que vivem nessas péssimas condições, e eu, muitas vezes, publico
comentários impróprios e desumanos de leitores de classe média e rica que
questionam, de forma arrogante e alienada, programas como o Bolsa Família, as
cotas universitárias e o Minha Casa, Minha Vida, que retiraram do desemprego,
da desesperança, da ignorância e da criminalidade milhões de cidadãos
brasileiros.
Publico os comentários levianos
em meu blog, o Palavra Livre, para mostrar como pensa e age um
certo segmento da sociedade brasileira, mesmo quando as palavras são duras
contra a minha pessoa. Não importa, porque o que interessa é mostrar que esses
leitores são arrogantes, presunçosos, preconceituosos, elitistas e por se
conduzirem assim em suas vidas, indubitavelmente, não conhecem as realidades
brasileiras. Por terem
estudado e decorado e até aprendido, acredito, as matérias necessárias para
suas formações profissionais, tornam-se advogados, juízes, militares,
policiais, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, comerciantes,
empresários etc., sem, no entanto, serem generosos e capazes de compreender que
não estamos vivos neste planeta para servir apenas aos nossos interesses
burgueses e às nossas futilidades.
Os desejos de classe média, que são realizar os sonhos de consumo e ganhar dinheiro para comprar casas, eletroeletrônicos, produtos de informática, viajar, frequentar hotéis e restaurantes, fazer operação plástica, receber comendas, diplomas, medalhas, placas e premiações de seus pares de profissão e organização e afirmar nas reuniões sociais, de forma subserviente e colonizada (é o complexo de vira-lata em toda sua essência e forma) que o Brasil e o seu povo não prestam e que maravilhosos são os europeus e os EUA, mesmo quando são informados que a roubalheira e a picaretagem dos considerados “ótimos” derreteram o mercado imobiliário, o sistema bancário e as bolsas, o que acarretou falências, desemprego, pobreza depressões, violência e suicídios, ou seja, uma crise moral e econômica sem precedentes nos países considerados desenvolvidos e que os meios de comunicação privados e hegemônicos brasileiros, evidentemente, nunca mostraram com detalhes.
Depois disso tudo, esses seres “superiores”,
“educadíssimos” e extremamente “inteligentes” (a modéstia é algo inalcançável
para eles) vão, por meio de uma grosseria e perversidade coletiva, às redes
sociais desejar a morte do presidente Lula, quando, alguns deles, não tomam
simplesmente o rumo de casa com um vazio na alma e no coração, para logo passar
a se dedicar às drogas — legais e ilegais — e ao álcool, muitas vezes de forma
escondida ou dissimulada. É isso o que acontece, porque eu sei, porque já vi e
porque pessoas que eram assim me contaram. Voltemos ao morro.
Estou no alto da favela. Olho para os becos e as
vielas que lembram as teias de aranha. São centenas e centenas de calçadas
estreitas que, inclusive, ficam embaixo das lajes, que formam pequenos túneis.
Ao olhar o emaranhado de vielas, penso logo nos traficantes e nos policiais a
correr, a se esconder, a se proteger dos tiros dos fuzis e de armas de outros
calibres e tamanhos. Penso também nos trabalhadores, nas donas de casa e nas
crianças. De onde estou, vislumbro as ruas da cidade e o morro do Juramentinho,
onde estive horas atrás. Dá para ver as obras de encostas realizadas lá, como
também tenho um panorama melhor e mais preciso das casas, da mata e do lixo por
onde passei antes de chegar ao cume do morro.
Estou cansado e o calor é intenso, apesar da brisa
que insiste em refrescar o meu rosto suado. Os pés doem e sinto vontade de
beber água. Mal começo a caminhar e uma moradora, como se tivesse lido meus
pensamentos, pergunta-me se eu quero água. Falo que sim. Ela se vira para dois
rapazes que estão a uns cinco metros de distância sentados em uma mureta de um
esqueleto de construção e grita: “Jorge, o senhor aqui quer água. Traga água e
um copo”. Ele retruca, com uma pergunta para mim: “Você quer água?” “Quero” —
respondo.
Enquanto os rapazes vão buscar a água, a jovem
senhora e seu marido com um bebê no colo se aproximam. “Quem são essas pessoas?”
— indaga o jovem pai. Respondo: “São técnicos e engenheiros da Secretaria de
Habitação. Estou a acompanhar essa visita ao Juramento. Estivemos também no
Juramentinho. Lá os operários estão a fazer obras de encostas por causa das
chuvas de verão. É uma obra definitiva e visa evitar os deslizamentos”. “Moço,
tem que fazer aqui também. Estamos abandonados. Tem muito lixo, não há coleta
diariamente, tem rato, insetos e esgoto. É um perigo para as crianças. Precisamos
de tantas coisas...”
Respirei fundo, e durante segundos não sabia o que
falar. O pai do bebê olha para mim, e pergunta: “Quando tiver obra aqui a
Prefeitura vai contratar gente daqui, não é?” Olhei para ele, e disse: “O que
eu sei é que quando há obras nas comunidades as pessoas das comunidades são
contratadas. O pessoal que realiza as obras do Juramentinho mora lá. Então eu
acho que aqui também será assim. Além disso, há o programa do Morar Carioca,
que inclui pavimentação, calçamento, esgotamento sanitário, além da construção
de Clínica da Família, creche, academia para os idosos fazer exercícios e
outros benefícios. É o que eu sei e o que eu vi quando fui a outras comunidades
que já tiveram acesso a essas coisas”. O rapaz se aproxima com uma garrafa pet
de dois litros. Entrega-me o copo e coloca água. A bebo e agradeço a gentileza.
Logo depois sou convidado pelos técnicos para
descer o morro e nos dirigirmos a uma pequena lan house onde vai ser realizada a reunião com os líderes
comunitários e os moradores em geral que querem fazer perguntas, reivindicações
ou reclamações. Na mesa tem presunto, bolo de fubá, queijo e refrigerantes.
Ninguém lancha. Os técnicos e eu estamos muito suados e cansados. Foi uma
subida difícil e com obstáculos, como a mata, buracos e o esgoto a céu aberto,
além de caminhos íngremes e escorregadios. As lideranças do local falam o que precisam
para melhorar as condições de vida das pessoas que moram no Juramento. Pleiteiam
o básico, ou seja, o que os moradores de outras favelas que estão a ser
beneficiados estão a receber do poder público: asfalto, calçamento, saneamento
básico, água, coleta de lixo, creche, unidade de saúde, retirada da mata e
demolição de casas e construções abandonadas e com risco de desmoronar.
No decorrer da reunião, uma moça com cerca de 30
anos é ouvida pelos técnicos. Ela informa que sua casa está em péssimas condições
e que em 2006 dois irmãos dela, menores de idade, perderam a vida, porque foram
soterrados, pois vítimas das chuvas daquele ano. Foi determinado então que ela
tivesse seu nome anotado para também, igual a mulher idosa, receber, se for o
caso, o aluguel social, até que sua situação seja resolvida definitivamente no
que tange à futura moradia. Uma amiga dela me observa e logo afirma: “Não sei
por que não recebemos nada, mas a Mangueira está sempre recebendo melhorias, e
sempre sai na televisão. A Globo gosta dela. Aqui nem repórteres vem mais. Só
vinham no tempo do Escadinha para falar mal da favela e inventar coisas que não
existem. Agora nem isso. Sumiram”.
Entretanto, o Governo do Estado e a Prefeitura
Municipal construíram nos últimos anos 70 mil moradias, conforme a Secretaria
de Habitação. O Rio é o Estado da Federação que mais construiu casas, por
intermédio de convênios com o Governo Federal. Essa informação não é veiculada
pelos grandes conglomerados privados de comunicação. Apesar de as televisões,
por exemplo, serem concessões públicas, elas não prestam serviços à população,
como informar o que acontece no Brasil e mostrar os avanços e os benefícios que
o povo brasileiro conquistou e pode ter acesso. A imprensa privada não informa,
apenas cuida de fofocas novelescas, com o intuito de combater o governo
trabalhista. Para isso, precisa se transformar em uma fábrica de crises e factoides,
porque, realmente, a imprensa comercial e privada não tem compromisso com a
Nação.
Antes de eu ir embora, a proprietária da loja me
informa que em setembro a menina Ana Luiza, de 13 anos, foi morta por seu
ex-namorado de 16 anos com um tiro na nuca dentro da lan house. O crime
revoltou a comunidade, e o assassino fugiu. Eu já estava fora da loja e voltei
a olhar para dentro da lan house
surpreso ao tempo que consternado. A vida é assim… É movida por pequenos e
grandes dramas, ainda mais quando as pessoas são carentes e lutam dia a dia
pela sobrevivência. Para se ter uma ideia da dura rotina de alguns moradores,
existem idosos que não descem o morro há dez, 20 anos. São cidadãos em situação
similar ao dos exilados ou dos presos, porque não têm o direito de ir e vir,
por causa de suas condições físicas ou enfermidades. Realmente, ninguém merece.
Sem comentários.
Existem pessoas primordiais para o desenvolvimento
das sociedades. Esses seres humanos espiritualmente desenvolvidos são
essenciais para que o mundo não seja dominado somente pelos indivíduos
insensatos, alienados, naturalmente frios e, sobretudo, egoístas, ao ponto de
ser contra programas como o Bolsa Família, que tem por finalidade garantir a
segurança alimentar daqueles cidadãos que não tiveram oportunidades ou são
menos instruídos ou podem menos. A visita à favela do Juramento se tornou muito
importante na minha vida. Eu já fui em outras localidades carentes, mas o
Juramento me surpreendeu por causa do abandono. Falta tudo. A comunidade é
populosa e, de acordo com o Governo do Estado, vai ser pacificada e urbanizada,
de acordo com a programação e as estratégias previamente estabelecidas. Não é
fácil encarar a realidade, ainda mais quando a verdade pode se transformar em
um soco no estômago. É isso aí.
4 comentários:
Davis,
gostei muito do texto/depoimento/matéria. É inaceitável o egoísmo da classe média (para não dizer a classe alta) brasileira.
Não sei de quem é a culpa, mas acho que falta muita coisa, falta iniciativa. A Europa foi toda reconstruída depois da guerra. Como fizeram? Quanto custou? Onde deu certo e onde deu errado? Há com certeza estudos a esse respeito, é colocar em prática. Sou muito cético quanto ao atual desenvolvimento do Brasil, já disse. O que está acontecendo me faz lembrar muito o milagre do início da década de 80, com a classe média indo ao paraíso e o pobre mais ou menos onde estava. Agora, a renda está sendo distribuída, mas lentamente. E as escolas, que custaram ao Brizola seu futuro político? Hospitais? Reformas e melhorias nas favelas ajudam, mas não são a solução. Essas pessoas têm que ser integradas, morar onde eu moro, onde você mora. O exemplo são os bairros mais antigos, como Glória, Flamengo, Catete, mesmo Copacabana, onde pessoas de diferentes faixas salariais moram lado a lado.
Abraços,
José Leonardo
O Pessoal das favelas tem que parar de criticar governo e policia e estudar ir a luta ao invés de ficar chorando miséria, o pessoal só pensa em farra não pensa no futuro e ai depois fica reclamando que a casa ta caindo , vai meter um concurso, vai fazer uma faculdade
nunca a favela vai mudar .
FAVELADO SO QUER SABER DE FAZER FILHO E BAILE...
Achei sua matéria muito interessante, passei grande parte da minha vida no morro do Juramento, atualmente estou cursando Pedagogia em outro município do Rio. Reconheço que a comunidade é muito carente e faltam muitas coisas, e também há situações em seu relato que eu desconhecia. Atualmente, parece que a situação piorou, o aumento da violência assola nossa comunidade e o projeto Morar Carioca não se concluiu e a promessa de uma UPP também. É triste ver uma grande comunidade nessa situação, sabendo o potencial que tem, coisas que podem ser investidas, mas infelizmente não são, e vejo todos a mercê de um governo corrupto e fadados a essa situação que ser humano nenhum deveria passar. E também é uma tristeza ver esses 2 comentários acima, carregado de preconceitos e esteriótipos, essas pessoas não sabem a realidade dos moradores do morro e mesmo assim falam como se convivessem diariamente com nossa situação.
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