Davis Sena Filho — Blog Palavra Livre
A idade estava
avançada. 84 anos. Pensava com seus botões: “a vida foi pródiga para comigo,
apesar de ter de desatar o nó de muitos problemas”. Lembrava-se de muitas
coisas de sua fase madura e de sua juventude; esta, para ele, tão curta quanto
à vida das borboletas. Sua memória, no entanto, não conseguia captar sua
infância e início da adolescência. Sentia um grande pesar por isso, pois queria,
antes de morrer, resgatar sua voz infantil, as vozes de seus pais, irmãos e
tios, os ruídos quase inaudíveis do sobrado onde nasceu, o ranger do assoalho,
os cantos dos passarinhos no vasto quintal e principalmente os cheiros de sua
infância emanados da cozinha, das flores do jardim, dos perfumes de sua mãe e
dos braços sempre suados e gordurosos de Antônia, dublê de babá, cozinheira e
contadora de histórias.
João Florêncio quando
tentava trazer á tona sua memória olfativa, sentia o cheiro da morte, pois,
quanto mais o homem procura lembrar seu passado, quanto mais busca as
reminiscências de sua tenra idade, mais ele tem consciência que a vida está se
esvaindo como areia fluindo na ampulheta. “Ah” – dizia – “os cheiros da minha
infância são indefectíveis!”. À tardinha se dirigia à varanda que dava para os
fundos do sobrado para melhor pensar no seu passado, e, ao mesmo tempo, julgar
a si próprio perante a vida que levou, tendo como base suas relações pessoais.
Mas o que mais
incomodava João Florêncio era realmente resgatar os cheiros da infância. O
cheiro de café novo, de manga madura, de carne assada. Os cheiros de terra
molhada, de maresia, de doces cozinhados em panela de barro sobre o fogão à
lenha. Os cheiros de fronhas e de lençóis depois de lavados e engomados. João
Florêncio, obviamente, convivia ainda com esses odores, que deixam de ser tão
prazerosos na vida adulta. Adulto, ele bem sabia, os sentidos ficam em
segundo plano, principalmente o olfato, que, para o equilíbrio biológico do homem,
é tão essencial quanto à visão.
João Florêncio
percebia que depois de adulto os objetivos de almejar bens materiais, a
dedicação à profissão e os problemas, importantes ou não, a serem resolvidos no
dia a dia, faz do homem um animal mutilado quanto à sua própria natureza,
retratada na capacidade ou não de utilizar seus sentidos. Para João Florêncio,
se o homem usasse mais seus sentidos como os outros animais, talvez a sociedade
humana não enfrentasse tantas crises, refletidas na falta de tolerância, que
leva rapidamente ao egoísmo, responsável direto por ganância, guerras, doenças
e mortes.
O resgate dos cheiros
da infância para João Florêncio estava intrinsecamente ligado à própria
continuação de sua vida, à sua condição humana. João Florêncio se preocupava,
antes de morrer, em saber ao menos quem era ele. Queria e buscava esse conforto
de saber se a vida valeu a pena, mesmo se a decepção, no final das contas, for
imperativa.
Passavam-se os dias...
O ancião se
desprendia, aos poucos, de tudo o que o rodeava. Estava fazendo um balanço de
sua vida: amores, empregos, enfermidades, sua finada companheira, filhos, pais,
amigos, satisfações e aborrecimentos, tristezas e alegrias. A vida fluía
freneticamente em seu coração. Suas veias pulsavam como as de um recém-nascido.
Bebia água sofregamente, pois seus lábios secavam e sua garganta ardia, como se
ele tivesse ingerido pimenta. Era a vida se oferecendo com força, tal qual a
terra quando entra em parto através das lavas e das labaredas dos vulcões.
“Os cheiros...” –
pensava.
“As crianças são os
únicos seres humanos que, por não estarem corrompidas, dominam plenamente seus
sentidos” – acreditava.
“Como estão na fase
das descobertas, amam, sem saber, seus sentidos, tirando deles prazer e
experiência de vida” – ponderava.
Sabendo disso, João
Florêncio começou a mapear em sua memória os lugares os quais freqüentava em
sua infância. Estava resoluto em procurar e por fim achar os cheiros perdidos
no tempo e no espaço que tanto o apeteceram. Precisava se encontrar com sua
própria consciência e não mais sentir o vazio das vidas estéreis e sem sentido.
O ancião percebeu que as pessoas vivem representando, até mesmo para se
proteger, com a finalidade de conseguir sobreviver. É a fragilidade dos homens
– o fracasso humano.
Para poder viver bem
consigo mesmo, o velho procurava, no fim de sua vida, redimir-se perante a
existência e seus semelhantes, mesmo que estes não saibam de sua procura.
“A consciência é
íntima de quem a tem” – conjecturava.
“E os cheiros da minha
infância trarão consciência à minha realidade, à minha verve, à minha história”
– ressaltava
Para João Florêncio,
o vetusto é somente o corpo deteriorado pelo tempo, o que não implica na
sabedoria de quem se fez sábio e de quem, através da compreensão, sente
compaixão pela pusilanimidade humana.
“Sabedoria é
compreensão” – observava.
“Experiência é sentir para entender
e reconhecer os outros, os cheiros” – murmurava, com convicção.
João Florêncio não
queria chegar ao fim de sua vida sem reencontrar a paz e a pureza dos
sentimentos e sentidos de sua infância. Queria morrer em paz. Apesar de ter
levado uma vida decente em sociedade, achava que todo homem, de uma forma ou de
outra, corrompe-se. Não é necessário matar, roubar ou cometer maledicências
para não se corromper. A maioria dos homens se corrompe, até mesmo pela força
da sobrevivência. E todos, bem intencionados ou não, já experimentaram, pelo
menos uma vez, este amargo gostinho.
Levantou-se de sua
poltrona, dirigiu-se ao quintal, perambulou por toda a extensão do vasto terreno pontilhado por plantas.
Abriu a braguilha e ficou olhando sem muita convicção, quase desconcentrado,
para a espuma que se formava no chão, por causa da urina. Urinou no pé de um
limoeiro e sentiu o forte cheiro que exalava dos frutos e das folhas da árvore.
Começou a rir baixinho e, paulatinamente, o riso foi aumentando de tom, até que
João Florêncio, emocionado, chegou às lágrimas. O velho enxergou sua infância e
cheirou sua vida.
Um comentário:
Belíssimo texto, profundo e questionador da vida. Adorei lê-lo.
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