Blog Palavra Livre
17/06/2012.
Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Estela, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: “Eles queriam o concreto. ‘Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura’. A pior coisa é esperar por tortura”.
“Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu.”
Sandra Kiefer
Dilma
chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson
Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de
Minas Gerais (Conedh/MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da
então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera
nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma
tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que
as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico
deformador: “Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face”.
Não
eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou,
pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que podem explicar o motivo de
a presidente ter os dentes levemente projetados para fora. “Minha arcada girou
para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte
do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu”, disse. Para
passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em gotas, de vez em quando, na
prisão. “Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz [o implacável capitão Alberto Albernaz,
do DOI-Codi de São Paulo] completou o serviço com um soco,
arrancando o dente”, completou.
Mais
tarde, durante a campanha presidencial, em 2009, Dilma faria pelo menos três
correções de ordem estética para se candidatar, que incluíram uma plástica
facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente,
realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e venceu um câncer
no sistema linfático. Guerreira, a presidenta suavizou as marcas deixadas pelo
passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas impressas na alma. “As marcas da
tortura sou eu. Fazem parte de mim”, definiu Dilma, em 2001, no depoimento
emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Nacional
da Verdade, em maio, 13 anos depois da Constituição Cidadã de 1988.
Fuga pela Rua Goiás
“Eu
comecei a ser procurada em Minas Gerais nos dias seguintes à prisão de Ângelo
Pessuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães
Linhares, e numa noite, no final de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado
e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do DOPS de
Minas Gerais que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua
do fundo, a Rua Goiás.”
Ligações com Ângelo
“Fui
interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre
processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber
meus contatos com Ângelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo
um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor
ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no
início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Ângelo Pessuti, mas eles
supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de
você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata.”
Local da tortura
“Acredito
hoje ter sido por isto que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para Minas
Gerais, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar
esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento,
eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para São Paulo), mas fui colocada
num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma
instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do
Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá.”
“Nesse
lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha
militância em Minas Gerais. Supuseram que, tendo apreendido documentos do
Ângelo [Pessuti] que integram o processo, achavam que nossa organização tinha
contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de presos. Acredito
ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente;
não tinha “pontos” e “aparelhos” para entregar.
Dente podre
“Uma
das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só
foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me
causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um
soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em
gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz
[capitão Alberto Albernaz]
completou o serviço com um soco, arrancando o dente.”
Pau-de-arara
“…Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: “em 1968 o que você estava fazendo?” e acabava no Ângelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não aguenta muito tempo.”
Palmatória
“Se
o interrogatório é de longa duração, com interrogador “experiente”, ele te bota
no pau-de-arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não
deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim
muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse “método”. No fim, quando
estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de
dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito.”
General
Sylvio Frota passa a tropa em revista no Palácio da Liberdade, em Belo
Horizonte: militar colocou Dilma na lista dos infiltrados no poder público.
Militares inquisitores escondem os rostos para não aparecer na foto enquanto Dilma depõe. Vergonha... |
“Verás que um filho teu não foge à luta”: Enquanto
os inquisitores da ditadura escondem seus rostos, Dilma mostra sua altivez e
dignidade.
“Tinha muito esquema de tortura psicológica,
ameaças. Eles interrogavam assim: “Me dá o contato da organização com a
polícia?” Eles queriam o concreto. “Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu
volto e vamos começar uma sessão de tortura”. A pior coisa é esperar por
tortura.”
Ameaças
“Depois [vinham] as ameaças: “Eu vou esquecer
a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai
saber que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber”. Em
São Paulo me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não
lembro, pois os lugares se confundem um pouco.”
Sequelas
“Acho que nenhum de nós consegue explicar a
sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho
que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma
desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a
vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é
maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos, o efeito é mais profundo,
no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.”
Sozinha na cela
“Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via
ninguém. Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban,
as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em Minas Gerais, sempre ficava
sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida
e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que estavam presas:
uma, por exemplo, Maria Celeste Martins, e Idoina de Souza Rangel, de São
Paulo.”
Visita da mãe
“Em Minas Gerais, estava sozinha. Não via gente. [A solidão] era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em São Paulo, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la.”
Cena da bomba
“Em Minas Gerais, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª RM, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro.”
Frio de cão
“Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um
frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam
treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o
hospital. Tive o “prazer” de conhecer o comandante general Sylvio Frota, que,
posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me
levando a perder o emprego.”
Motivos
“Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas Gerais, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas.”
Morte e solidão
“Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida.”
Marcas da tortura
“As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim.”
Processo à revelia
Num primeiro momento, Dilma se recusou a entrar com
pedido de reparação. Só depois, com a insistência de antigos companheiros,
decidiu falar sobre a tortura.
Sandra Kiefer
O depoimento de Dilma Rousseff é parte do processo
aberto em março de 2001 no Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais
(Conedh/MG), criado por determinação do então governador Itamar Franco para
indenizar presos políticos mineiros. O nome de Dilma foi o 12º da primeira leva
de 53 militantes a receber R$30 mil a título de reparação por torturas impostas
por agentes do Estado. Na documentação, consta que o valor foi depositado na
conta de Dilma em março de 2002, exatos dez anos e dois meses antes da
instalação da Comissão Nacional da Verdade. Recentemente, ainda foi paga a
indenização pelo Conedh do Rio de Janeiro, reivindicada em 2004. A presidente
divulgou que vai doar a importância de R$20 mil ao Tortura Nunca Mais.
O promotor de Justiça de Juiz de Fora (MG), Antônio
Aurélio Silva, foi o relator do processo de Dilma por Minas. Avesso a
entrevistas, diz apenas que o processo correu à revelia da presidente, que
inicialmente resistiu a entrar com pedido de reparação por ter sofrido tortura.
Sua inscrição foi feita sob pressão de representantes mineiros do grupo Tortura
Nunca Mais. Eles conseguiram colher a assinatura da mãe dela, Dilma Jane. “No
primeiro momento, Dilma foi contra, mas depois entendeu a importância histórica
do ato e acabou colaborando no processo”, afirma.
Até então, o episódio da tortura de Dilma em Minas
permanecia desconhecido entre os próprios militantes estudantis de esquerda de
Belo Horizonte, acusados de subversão na época da ditadura. “Não sabia que ela
tinha sido torturada em Juiz de Fora”, surpreende-se Gilberto Vasconcelos, o
Ivo, presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Uberaba e
principal contato da organização Colina na cidade. Em janeiro de 1972, Gilberto
foi transferido de São Paulo para Juiz de Fora com Dilma, dentro do mesmo
camburão. “Não posso testemunhar sobre a tortura de Dilma em Juiz de Fora,
porque, chegando lá, fomos separados e não tive mais contato com ela. Só
voltaria a vê-la no dia do julgamento”, completa.
Aquele abraço
Gilberto é conterrâneo de Dilma. Na época, ela
tinha 22 anos e ele, 23. Ambos militavam no setor estudantil da organização de
luta armada Colina, batizada em homenagem às montanhas de Minas. Mais tarde, na
clandestinidade, os dois se tornariam amigos de Carlos Alberto Soares de
Freitas, o Beto, de codinome Breno, que chegaria a ser dirigente nacional da
VAR-Palmares. “Não há melhor lugar para se esconder do que na praia. Ficávamos
eu, ela e o Beto sentados na praia, cantando as músicas da revolução. Um dia,
chegou o Beto cantando ‘Aquele abraço’, do Gilberto Gil, que eu nunca tinha
ouvido. Dilma cantou junto. Ela gostava de cantar e isso nos unia além das
convicções ideológicas”, lembra.
Em fevereiro de 1971, Beto seria morto em combate,
assassinado com três tiros na Casa da Morte de Petrópolis, no Rio, segundo
consta no livro A vida quer é coragem, lançado em janeiro por Ricardo
Amaral, ex-assessor de imprensa de Dilma, que trabalhou em Belo Horizonte como
repórter do antigo Diário do Comércio. Em homenagem ao amigo de lutas,
Gilberto batizou seus filhos como Beto e Breno.
Duas perguntas para Gilberto Vasconcelos
Como foi sua passagem por São Paulo?
Eu já estava no presídio Tiradentes. Uns seis meses
depois, chegou o Max, codinome do Carlos Franklin Paixão Araújo, pai da filha
de Dilma. Nós ficamos presos na mesma cela, no mesmo beliche durante um ano e
meio. O Max se comunicava com ela por meio de bilhetinhos escritos com caneta
Bic de ponta fina e enrolados no durex, escondidos na obturação do dente. O
dentista era um preso político e fazia a troca dos papeizinhos entre a ala
feminina e a masculina. Ele era apaixonado pela Dilma e os dois se gostavam
mesmo.
E quanto à jovem militante Dilma?
Não estou cometendo nenhuma inconfidência, pois os
dois são grandes amigos até hoje, isso é notório. Max sempre foi um cara
extraordinário, de raciocínio rápido. Engraçado como as pessoas mudam pouco com
o tempo. Estive com Max no casamento da Paula (filha de Dilma), em Porto
Alegre, e ele continua do mesmo jeito. Dilma também. Ela estava cercada de
amigos e me tirou para dançar na festa. Apesar de ter uma imagem que não
reflete isso, é uma pessoa sensível, carinhosa, afável e uma das pessoas mais
generosas que conheço. Muito antes de ela se tornar ministra, de ser
presidente, sempre disse isso.
3 comentários:
Deveria ter aprendido com tudo isso, essa mesma polícia que fez e continua fazendo isso em todo o Brasil e particulamente no rio de Janeiro é a polícia do Governo Cabral e ela e o Lula apoiam, de que serviu "tanta gente que partiu"????
É incrível e completamente frio essa gente reacionário como o Leon Diniz. Como não tem argumentos sólidos e sensatos, escreve uma besteira dessa. O que tem a ver a questão da Dilma com a policia do Cabral, além do fato histórico? Gente de direita é dose pra mamute. Insensível, poderia ao menos ver o que acontece com a policia tucana paulista, campeã de homicídios sem suas causas explicadas. Lmanetável esse cara sem argumentos, porque a verdade tolheu seu raciocínio.
Para não me emocionar...só vou deixar registrado o meu pesar pelos horrores da nefasta ditadura e/ou suas perversas torturas.
Mas quero registrar, principalmente, o meu orgulho em ter votado em cidadã tão admirável, corajosa, altruísta, capacitada, elegante, inteligente, ética, enfim, a grande Presidenta Dilma por quem nutro profundo respeito e consideração. Parabéns ao blogueiro, pelo irretocável _ verdadeira aula de história "recente" _e oportuno post.
Abraço.
Marcos Lúcio
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