Alguns
generais morrem em campo de batalha. Outros falecem no leito doméstico,
pronunciado supostas frases patrióticas. Alguns morrem assassinados em
revoluções, golpes e complôs. Outros caíram do cavalo (sem metáforas) e
fraturaram o pescoço. Mas, até agora, não havia registros de um
ex-ditado/general sul-americano que tenha morrido sentado no vaso
sanitário, ao lado do prosaico rolinho de papel higiênico. J.R.Videla
encerrou sua carreira desta última forma, com um óbito digno de entrar
nos anais da História.
Por Ariel Palacios — Os Hermanos
O “senhor da vida e da morte”
durante a última ditadura militar argentina (1976-83), o ex-general
Jorge Rafael Videla, morreu na manhã da sexta-feira sentado no vaso
sanitário de sua cela na prisão de Marcos Paz. O ex-ditador, que havia
tido disenteria na véspera, acordou após uma noite com problemas
estomacais e intestinais e sentou-se no vaso. Ali, nesse âmbito,
ocorreria o desenlace.
Às 6:40 da manhã, um dos guardas da
prisão, em sua recontagem de presos, viu pelo visor da cela que Videla
estava sentado no vaso.
Mas, em uma segunda ronda, tempos depois,
o guarda percebeu que Videla permanecia sobre o vaso, embora reclinado
para a frente. Imediatamente, o guarda chamou um médico. Os dois
entraram na sala e perceberam que Videla não tinha pulso. Suas pupilas
não reagiam.
Com as calças de seu pijama arriadas, sem
o aprumo militar que o caracterizou durante décadas, o todo-poderoso
homem da ditadura militar argentina encerrou sua carreira.
Cecilia Pando, esposa de um ex-militar e
líder de um pequeno grupo de extrema direita que reivindica a ditadura
argentina, havia divulgado na sexta-feira a informação de que Videla
havia morrido placidamente na cama de sua cela. Pando, amiga de Videla,
tentava evitar uma imagem escatológica no final da vida de seu ídolo.
No
entanto, as autoridades penitenciárias confirmaram no fim de semana que
sua morte ocorreu em um cenário mais sui generis. Eventos assim não abundam. Um óbito para entrar nos anais da História.
Documento indica a forma como Videla foi encontrado em seus primeiros momentos póstumos.
Videla havia sido condenado em 2010 à
pena de prisão perpétua pelo assassinato de civis. No ano passado
acumulou uma pena de 50 anos pelo sequestro de 35 bebês, filhos das
desaparecidas políticas. Na ocasião, em declarações nos tribunais,
admitiu pela primeira vez na História as mortes dos desaparecidos
políticos. No entanto, deixou claro que não se arrependia dos
fuzilamentos.
O ex-ditador – que comandou o país nos
primeiros cinco anos de um total de sete da ditadura militar – não
receberá qualquer tipo de honra militar durante seu enterro, já que,
além de ter sido destituído de seu grau militar, desde 2009 está em
vigência uma resolução que proíbe a realização de honras militares nos
funerais de ex-integrantes das Juntas Militares.
A líder da organização das Avós da Praça de Mayo, Estela de Carlotto, declarou que Videla era “um ser desprezível que deixou este mundo”. Carlotto destacou que o ex-ditador “nunca se arrependeu do genocídio que cometeu”.
O deputado Horacio Pietragalla, que foi
sequestrado pelos militares quando era um bebê de oito meses em 1976,
declarou que Videla morreu “da forma como tinha que ser: preso e
condenado”. No entanto, lamentou que “nunca se arrependeu” dos
assassinatos que ordenou. Pietragalla recuperou sua verdadeira
identidade quando tinha 25 anos.
Segundo Pietragalla, “os crimes de Videla nos recordam a que ponto tão sinistro a Humanidade pode chegar”.
Sua ditadura teve o saldo de 30 mil civis sequestrados, torturados e mortos, além de 300 mil exilados.
Além disso, a ditadura roubou 500 bebês,
filhos das desaparecidas. Deste total, as Avós da Praça de Mayo
conseguiram nas últimas três décadas e meia devolver a identidade a 108
jovens que eram crianças recém-nascidas na época da ditadura.
Videla
organizou o golpe de 24 de março de 1976 que derrubou a presidente María
Estela Martínez de Perón, mais conhecida como “Isabelita”. Na época o
general batizou o novo regime de “Processo de Reorganização Nacional”,
popularmente conhecido como “El Proceso”. Ele governou a Argentina
durante cinco anos (do total de sete da ditadura).
CARREIRA - Descendente
de uma tradicional família do interior da Argentina, Jorge Rafael Videla
nasceu em 1925 na cidade de Mercedes, província de Buenos Aires. Filho
de um coronel do Exército, seguiu a carreira do pai. O jovem Videla
formou-se na Academia Militar em 1942 com o grau de subtenente da
infantaria. Aluno destacado, foi o sexto colocado de um total de 196
cadetes. Sua ascenção foi constante. Em 1971, designado general de
brigada, tornou-se o diretor do Colégio Militar. Em agosto de 1975 a
então presidente Isabelita Perón colocou Videla no posto de Comandante
em chefe do Exército.
Poucos meses depois, no dia 24 de março
de 1976, Videla liderou o golpe de Estado que derrubou Isabelita. O
general – que foi presidente de facto da Argentina até março de 1981 –
comandou o período de maior repressão da ditadura.
Apesar da violência de seu governo, era considerado a ala “suave” dos líderes militares.
JULGAMENTOS - A ditadura
acabou em dezembro de 1983, quando Videla estava na reserva. Com a
volta da democracia, começaram as investigações sobre os crimes do
ex-ditador. Ele foi condenado à prisão perpétua pela primeira vez em
1985, durante o julgamento das juntas militares – denominado de
“Nuremberg argentino”. Mas, em 1990 foi anistiado pelo presidente Carlos
Menem.
Em 1998, os organismos de defesa dos
direitos humanos driblaram as leis de perdão aos militares e conseguiram
a detenção de Videla pelos sequestro de crianças, crime que não havia
sido incluído no indulto presidencial.
Em 2007, com a anulação dos indultos,
declarados inconstitucionais, Videla tornou-se alvo de uma série de
processos na Justiça relativos aos assassinatos ordenados por ele
durante a ditadura.
Em um dos julgamentos, em 2010, Videla
fez uma prolongada defesa das ações do regime militar e alegou a
“necessária crueldade” da ditadura. O ex-ditador também sugeriu que a
“sociedade argentina” havia sido cúmplice da ditadura, já que, segundo
ele, “não existiam vozes contrárias” ao regime militar. Videla também
disse que sua sentença seria “injusta” e que ele era um “bode
expiatório”.
Ex-ditador
tentou argumentar – citando Santo Tomás de Aquino – que a ditadura
havia feito uma “guerra justa”. Na foto, Videla – acompanhado por uma
freira – em visita ao Chile, país na época comandado pelo general
Augusto Ramón Pinochet. Nessa época, 1978, a ditadura argentina já havia
matado 20 mil do total 30 mil desaparecidos em todo o período do regime
militar, além de implantar 540 campos de detenção e tortura (dos mais
diversos tamanhos) em todo o país. Paralelamente, Videla ia à missa
todas as manhãs.
MISSA E MORTOS - Videla
diferenciou-se dos outros líderes de regimes militares da América Latina
pela aplicação de um plano de apropriação sistemática de bebês e o
ocultamento de sua identidades. Os bebês, filhos das prisioneiras
políticas, nasciam no cativeiro de suas mães, nos centros clandestinos
de detenção e tortura da ditadura. Após os partos eram entregues a
famílias de militares e policiais estéreis. Na sequência, as mães
biológicas eram assassinadas e seus corpos “desapareciam”.
Em um dos julgamentos, em 2010, Videla
fez uma prolongada defesa das ações do regime militar e alegou a
“necessária crueldade” da ditadura. O ex-ditador também sugeriu que a
“sociedade argentina” havia sido cúmplice da ditadura, já que, segundo
ele, “não existiam vozes contrárias” ao regime militar.
Videla também disse que sua sentença seria “injusta” e que ele era um “bode expiatório”.
María Seoane, que com Vicente Muleiro escreveu “O Ditador”, uma detalhada biografia não-autorizada do ex-general, me disse que “Videla
não se arrepende de nada, pois voltaria a matar todos aqueles que
matou. Não há nenhum rastro de arrependimento nele. É o mal em estado
puro!”
Segundo Seoane, “Videla reunia-se com
o chefe de inteligência antes de ir à missa de manhã cedo. Nessas
reuniões informava-se sobre quantos inimigos o regime havia assassinado
no dia anterior e como estavam funcionando os 500 campos de concentração
da ditadura”.
APELIDO – Durante a ditadura Videla foi apelidado de “a pantera cor de rosa”, por dois motivos:
a) sua sorte em escapar de vários atentados enquanto era ditador, tal como a pantera do desenho animado.
b) Era magro e tinha o mesmo caminhar cadenciado da pantera cor de rosa.
Caronte e
seu ferry boat que faz a travessia do Aqueronte. O barqueiro do Inferno
de Dante Alighieri foi brilhantemente retratado por Gustavo Doré no
século XIX para ilustrar “A Divina Comédia”.
CRONOLOGIA DA DITADURA E ASSUNTOS RELATIVOS
1976-1983 – Ditadura Militar
1983 – Volta à democracia
1985 – Início dos julgamentos aos militares
1986 – Rebeliões militares. Primeira lei do perdão, a ‘Ponto Final’
1987 – Mais rebeliões militares. Segunda lei do perdão, a ‘Obediência Devida’
1990 – A última rebelião militar. Indulto às cúpulas militares
1998-99 – Abertura dos processos por sequestros de crianças, crime não incluído nos julgamentos dos anos 80
2005-2007 – Revogação das Leis do Perdão e abertura de novos julgamentos.
- Picana elétrica: criada nos anos 30 na
Argentina por Leopoldo Lugones Hijo, filho do escritor Leopoldo Lugones.
Era o instrumento para assustar o gado com choques elétricos. Aplicado a
seres humanos, tornou-se no instrumento preferido de tortura na
Argentina.
- Submarino molhado: afundar a cabeça de
uma pessoa em uma tina d’água. Ocasionalmente a tina também estava cheia
de excrementos humanos.
- Submarino seco: colocar a cabeça de uma pessoa dentro de um saco de plástico e esperar que ela ficasse quase asfixiada.
- O rato no cólon: colocação de um rato, faminto, no cólon de um homem. Nas mulheres, o rato era colocado na vagina.
Diversas testemunhas indicam que os
torturadores argentinos ouviam marchas militares do Terceiro Reich e
discursos de Adolf Hitler enquanto torturavam.
- Durante a Ditadura, militares e
policiais argentinos assassinaram ao redor de 30 mil civis (segundo
organismos de defesa dos Direitos Humanos argentinos e organizações
internacionais), a maioria dos quais sem militância na guerrilha.
- Vários militares afirmam que
assassinaram “somente” 8 mil civis. Esse é o número que o general e
ex-ditador Reynaldo Bignone, declarou à TV francesa. Videla, no ano
passado, citou mais de 7 mil.
- Segundo os próprios militares, a
guerrilha e grupos terroristas assassinaram 900 pessoas, a maioria dos
quais militares e policiais.
- Durante a Ditadura 500 bebês foram sequestrados, filhos das desaparecidas (segundo dados das Avós da Praça de Mayo)
- 108 crianças desaparecidas foram recuperadas ou identificadas por suas famílias biológicas.
FRACASSOS ECONÔMICOS E MILITARES: Além de ter sido a mais sanguinária Ditadura foi um fracasso tanto na área militar como na esfera econômica.
Fiascos Militares:
- Entre 1976 e 1978 a Ditadura colocou
quase a totalidade das Forças Armadas para perseguir uma guerrilha que
já estava praticamente desmantelada desde antes do golpe, em 1975.
Analistas militares destacam que este desvio das Forças Armadas
argentinas (que havia iniciado no final dos anos 60 mas intensificou-se a
partir do golpe) reduziu drasticamente o profissionalismo dos
militares.
- Em 1978, a Junta Militar argentina
levou o país a uma escalada armamentista contra o Chile. Em dezembro
daquele ano, a invasão argentina do território chileno foi detida graças
à intermediação papal. O custo da corrida armamentista colocou o país
em graves problemas financeiros.
- Em 1982, perante uma crise social,
perda de sustentabilidade política e problemas econômicos, o então
ditador Leopoldo Fortunato Galtieri – famoso por seu intenso approach ao
scotch – decidiu invadir as ilhas Malvinas para distrair a atenção da
população. Resultado: após um breve período de combate, os oficiais do
ditador renderam-se às tropas britânicas.
Desastres econômicos:
- Em sete anos de Ditadura, a dívida externa subiu de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões.
- A inflação do governo civil derrubado
pela Ditadura, que era considerada um índice “absurdo alto” pelos
militares havia sido de 182% anual. Mas, este índice foi superado pela
política econômica caótica da Ditadura, que encerrou sua administração
com 343% anual.
- A pobreza disparou de 5% da população argentina para 28%
- A participação da indústria no PIB caiu de 37,5% para 25%, o que equivaleu a um retrocesso dos níveis dos anos 60.
- Além disso, a Ditadura criou uma ciranda financeira, conhecida como “la plata dulce”, ou, “o doce dinheiro”.
- Ao mesmo tempo em que tomavam medidas
neoliberais, como a abertura irrestrita das importações, os militares
continuavam mantendo imensas estruturas nas empresas estatais, que
transformaram-se em cabides de emprego de generais, coronéis e seus
parentes.
- Os militares também estatizaram US$ 15
bilhões de dívidas das principais empresas privadas do país (além das
filiais argentinas de empresas estrangeiras).
- No meio desse caos econômico, os militares provocaram um déficit fiscal de 15% do PIB.
- A repressão provocou um êxodo de
centenas de milhares de profissionais do país. Os militares, em cargos
burocráticos, exacerbaram a corrupção na máquina estatal.
Paradoxos: A Ditadura
tinha um discurso anticomunista mas continuou vendendo trigo para a URSS
e não aderiu ao boicote americano contra as Olimpíadas de Moscou em
1980.
‘GUERRA’ OU REBELIÃO LOCALIZADA?
–
Os militares deram o golpe e instauraram a ditadura mais sanguinária da
História da América do Sul (América do Sul, não América Latina) com o
argumento (um dos vários) de que a guerrilha controlava grande parte do
país. Segundo os ex-integrantes da ditadura, os militares argentinos
implementaram uma “guerra”.
No entanto, trata-se de um exagero para justificar os massacres cometidos durante a ditadura.
A pequena guerrilha argentina, mais
especificamente o ERP, dominava às duras penas uma pequena porcentagem
da província de Tucumán, a menor província da Argentina.
A magnificação da guerrilha foi útil para
os militares e também para o prestígio dos guerrilheiros. A nenhum dos
dois lados era conveniente admitir a realidade, de que a área controlada
pela guerrilha era ínfima.
Os militares e os setores civis que
apoiaram o golpe (e os saudosistas daqueles tempos) afirmavam (e ainda
afirmam) que o país estava em guerra civil nos nos 70.
Mas, “guerra civil”, rigorosamente,
seriam conflitos de proporções mais substanciais, tais como a Guerra da
Secessão dos EUA, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Civil Russa logo
após a proclamação do Estado Soviético, a Guerra das Duas Rosas
(Lancasters versus Yorks, na Inglaterra) ou a Guerra Civil da Grécia
após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ainda: a Guerra Civil da Nicarágua, e a
de El Salvador. Isto é: bombardeios de cidades, grandes êxodos de
refugiados, centenas de milhares de mortos, uma boa parte de um país
controlado por um dos lados, e outra parte controlada por outro lado.
Isso não ocorreu na Argentina nos anos 70.
JR
Videla e sua troupe em discurso durante a ditadura militar argentina.
Seu governo, além de protagonizar um massacre de civis, foi um fracasso
econômico e militar.
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