Tio Sam não aceitou o beiço da Globo
Miguel do Rosário
Lula ganhou sua primeira
eleição presidencial em 27 de outubro de 2002. No dia seguinte, 28 de
outubro de 2002, a Globo declara que não tem mais condições de pagar
suas dívidas internacionais. O beiço da Globo, saberíamos algum tempo
depois, através de uma reportagem da BBC (e depois confirmada pela própria Globo), remontava a quase dois bilhões de dólares. Em comunicado oficial, divulgado
pela Folha de São Paulo, a Globo diria que a razão do beiço seria a
“deterioração da situação econômica do Brasil”. A Folha apurou que “a
Globo decidiu anunciar a suspensão do pagamento da dívida da Globopar
apenas ontem, um dia depois do resultado das eleições presidenciais,
para que isso não fosse usado por nenhum dos dois lados da campanha
eleitoral.”
Deu inclusive no New York Times:
Diferentemente da Receita Federal do Brasil e do Ministério Público,
os credores internacionais não aceitaram passivamente o calote da Globo,
e entraram com uma ação judicial pedindo falência compulsória da
empresa. A lei de concordata dos EUA é bastante dura com caloteiros de
outros países, mas só quando os credores conseguem provar que o devedor
tem patrimônio e negócios em território americano. Neste caso, a justiça
americana tenta embargar inclusive patrimônio que o réu possua em
outros países. Algo assim seria impensável para uma empresa cujo
principal ativo é uma concessão pública de TV. Imagine a Globo nas
mãosde agiotas de New Jersey?
Os platinados, com apoio do escritório de Sérgio Bermudes, esse mesmo que “pagou do seu bolso” uma festão de aniversário para o ministro do STF, Luiz Fux, e que emprega a filha de Fux e a esposa de Gilmar Mendes, conseguiram sustar a medida, alegando
que não possuíam negócios ou propriedades nos EUA. E que os credores
tinham que aguardar pacientemente um processo de reestruturação feito
sob as leis brasileiras. Usando algumas brechas da lei da falência nos
EUA, como o “Forum Non Conveniens” e a “personal jurisdiction”, segundo
os quais a justiça americana entende que os EUA não são o melhor fórum
para se discutir uma dívida, a Globo conseguiu, ao menos por um tempo,
dar o maior beiço da história da mídia mundial.
Entretanto, entre os credores, havia um tal de W.R. Huff Asset
Management Co., L.L.C., controlado por um sujeito com fama de durão,
espécie de agiota de luxo dos ricaços de Nova York, que não aceitou o
calote. A Globopar devia US$ 94 milhões ao fundo, ou 5% da dívida total,
o suficiente contudo para enfurecer o velho William Huff. O investidor
se uniu a outros prejudicados e o caso então foi para uma corte de
apelação no distrito sul de Nova York. De vez em quando a Globo tromba
com alguém corajoso. No Brasil, alguns meses mais tarde, o auditor
fiscal Alberto Zilé daria um susto de R$ 615 milhões na Globo. Em Nova
York, o enfrentamento veio do juiz Victo Marrero, ao tomar uma decisão
logo convertida em modelo para casos similares, e objeto de estudos acadêmicos (outros estudos aqui e aqui).
E que poderia gerar, aqui no Brasil, um questionamento que nunca
aconteceu. A imprensa brasileira abafou fragorosamente a derrota
judicial da Globopar em novembro de 2004.
Marrero aceitou o argumento dos credores, segundo os quais a Globopar tinha sim propriedades nos EUA: a DTH Inc,
empresa criada sob as leis de Delaware, um conhecido paraíso fiscal em
território americano. O endereço, conforme levantou o amigo Fernando
Brito, fica na rua dos Laranjas (sic), ou Orange no original. Segundo os
credores, essa DTH tinha importante participação acionária em três
outras empresas do ramo de TV por assinatura. A própria sigla DTH
(“Direct to Home”, ou direto para o lar) é usada para se referir ao
negócio. A Globo havia fundado a NET no final da década de 90 e depois
se tornaria sócia majoritária da Sky TV.
Os credores também estranharam que a Globo tivesse obtido empréstimos
tão grandes, e alegasse possuir apenas míseros US$ 30 mil no JPMorgan
Chase Bank. De qualquer forma, este valor, mesmo pequeno, mais a
existência da empresa em Delaware, eram suficientes para fazer a Globo
cair na rede e entrar na lei de falência sob território americano.
A esta altura, o velho Huff provavelmente já descobrira que a
Globopar controlava a Sky, uma das mais importantes empresas de tv por
assinatura em operação no Brasil, e que esse negócio devia ter alguma a
coisa a ver com a DTH Inc. Em outubro de 2004, a imprensa mundial trazia
uma novidade ainda mais interessante aos credores da Globopar: a
bilionário Rupert Murdoch decidira dar uma mãozinha aos irmãos Marinho e
se juntar à SKY. A fusão entre a Direct TV, de Murdoch, e SKY, da
Globopar, cimentaria a aliança entre os dois grupos de mídia mais
reacionários do mundo, dominando 95% do mercado brasileiro. Um monopólio
absurdo que seria vergonhosamente aprovado pelo CADE no ano seguinte.
Os olhos de Huff devem ter brilhado e ele foi à luta. E ganhou.
Com a nova decisão
da Justiça americana, a Globo teve que sambar para quitar suas dívidas
no exterior. Então ela contrata uma firma especializada, a Debevoise & Plimpton LLP,
que promove uma brilhante reestruturação das dívidas da Globo. Tão
brilhante que ganhou prêmios e se tornou, também, objeto de artigos e
estudos, como um case de sucesso.
A reestruturação das dívidas da Globo é relativamente rápida. Boa
parte dos débitos é convertida em bônus e ações para seus credores no
exterior. Parte dela é paga com a venda da Net para outro rei do
monopólio, Carlos Slim, cuja Telmex dominava então mais de 90% das linhas telefônicas do México.
Todos monopólios da área de mídia e telecomunicações das Américas se davam as mãos.
Ao final de julho de 2005, a Globo consegue, enfim, dar por encerrado
o seu pesadelo financeiro, ao concluir acordo com seus credores. Na
verdade, desde meados de abril, o processo já contava com aval dos
principais credores. Os recursos de Murdoch e Slim foram fundamentais.
Fim do pesadelo, começo de outro. Os irmãos Marinho mal puderam
descansar a cabeça no travesseiro, sonhando com novas estratégias para
dominar o Brasil, quando recebem um telefone urgente de seus advogados
que trabalham na Rua Afranio de Melo Franco 135. No dia 1 de agosto de
2005, poucos dias após a Globo dar por encerrada a sua “reestruturação
financeira”, a Receita Federal envia uma intimação à empresa.
Mas aí a fortuna, até então cruel com os pobres irmãos Marinho, que
tiveram inclusive que vender algumas centenas dos milhares de imóveis
que seu pai, Roberto Marinho, acumulara durante a vida, voltou a lhes
sorrir. Algumas semanas antes, Roberto Jefferson dera uma entrevista bombástica
à Folha de São Paulo. O escândalo caiu do céu para a Globo, que o
abraçou com um senso de oportunidade digno da empresa que mais soube se
aproveitar da ditadura. Tinha início o mensalão, que iria abalar o país e
vergar o governo. Qualquer ação da Receita, neste momento, seria
interpretada como uma retaliação autoritária e covarde de um governo
corrupto contra a imprensa livre.
A Globo estava, mais uma vez, salva. Com a reeleição de Lula em 2006,
porém, a Globo deve ter ficado apavorada com a possibilidade do
presidente, fortalecido pela alta popularidade e pela vitória eleitoral,
querer se vingar. Na primeira oportunidade, o processo de sonegação,
que tinha implicações criminais bem mais pesadas do que a simples
sonegação fiscal (se é que se pode chamar uma dívida fiscal de R$ 615
milhões de “simples”), desaparece, após, estranhamente, jamais ter sido
digitalizado.
Tudo ia muito bem, até que… o processo reaparece,
ou ao menos parte dele, nas telas de um modesto blog chamado O
Cafezinho. Não, senhores, o escândalo Alstom – Siemens é muito grave e
merece ser punido com todo o rigor. O Cafezinho e toda a blogosfera, ao
contrário da mídia e sua “dupla cautela” está reagindo com justa
indignação contra uma roubalheira que já dura mais de 20 anos no estado
de São Paulo. Mas não esqueceremos a sonegação da Globo, não enquanto os
mistérios envolvendo possível evasão de divisas e lavagem de dinheiro
em paraíso fiscal, e o posterior roubo do processo, não forem
devidamente solucionados por nosso corajoso e ilibado Ministério
Público. Não sei se o “gigante” realmente acordou, se voltou a dormir,
mas esse blogueiro aqui permanece de olhos bem abertos!
Um comentário:
Toda a atenção e cuidado com este vasto e nefasto playground do Brasil ...que é onde o povo vai brincar todas as noites, não so´assistindo novelas. Eu sou "povo" mas não vejo telê.
Marcos Lúcio
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