sexta-feira, 11 de outubro de 2013

EXÉRCITO


Por Davis Sena Filho Blog Palavra Livre


“O Exército é socialista em sua forma administrativa e em sua rotina comunitária, mas politicamente conservador, ideologicamente de direita, e defensor do regime de mercado liderado pelos países capitalistas, colonialistas e militarmente agressores”

O Exército Brasileiro seria o estado de bem-estar social, guardadas as devidas proporções, no que concerne à complexidade e ao tamanho do Brasil. Sou filho de um oficial do Exército. Até meus 21 anos tive contato rotineiro com a vida militar, pois morei em prédios e casas pertencentes ao EB, associei-me a clubes da instituição e fui atendido por clínicas e hospitais militares. As compras de alimentos eram feitas em mercados militares, na década de 1960, no interior do Rio Grande do Sul. Frequentei reuniões e confraternizações, juntamente com meus amigos filhos de militares e também de civis. Enfim, minhas primeiras relações sociais aconteceram no âmbito comunitário do Exército. A minha primeira namorada era filha de um oficial de Engenharia formado pelo IME. Contudo, o tempo passou, e faz 33 anos que eu não tenho quaisquer contatos com a rotina de vida, comunitária e social dos militares.

Por sua vez, o único benefício do Exército que não tive acesso foram os bancos escolares. Estudei em escolas públicas estaduais e em colégios católicos. Porém, o fato é que a instituição militar tem escolas de alto nível, sejam elas de ensino fundamental, secundário e acadêmico. Além do mais, o Exército paga salários religiosamente em dia e permite que seus oficiais se transfiram de cidade para cidade, de estado para estado, a favorecer desse modo seus integrantes, no sentido de eles terem a oportunidade de conhecer o Brasil e as diversas culturas de seu povo, o que é essencial para a integração do militar à sociedade civil, bem como para a libertação de preconceitos regionais e sociais.

Lembro-me que havia militares que não gostavam de mudar de cidade ou de estado, mas meu pai e minha mãe se mudavam, em média, de três em três anos e meio. Eu achava que o fato de mudar era muito interessante e útil para o meu conhecimento sobre o País, bem como sentir a expectativa da aventura, da ludicidade, tão comum aos jovens, além de fazer novas amizades e “desbravar” a nova cidade, que eu passaria a conhecer. A vida dos militares é igual à de qualquer cidadão civil. Eles têm as mesmas necessidades, sonhos e desejos de qualquer um que não seja militar. Mas há uma questão fundamental. Os militares têm uma vida profissional regida por um regulamento severo. Não poderia ser de outra forma, pois o Exército é o braço armado da sociedade. Onde existem armas, tem de haver controle e por isso, muitas vezes, os civis confundem a disciplina rígida dos militares com autoritarismo.

Conheci muitos militares democráticos e muitos civis autoritários e até mesmo tirânicos, principalmente em alguns empregos onde trabalhei, tanto no setor público quanto no privado. Conheci famílias de militares abertas a conceitos e novidades e famílias de civis conservadoras, algumas absurdamente militaristas, fechadas a qualquer coisa, tema ou assunto que não entendessem ou viessem trazer mudanças em suas vidas, mesmo se fossem para melhor. Agora, a questão fundamental são os paradoxos, os antagonismos do Exército em relação ao jeito de viver de seus integrantes e como os militares que chegaram ao poder em 1964 enxergavam a sociedade civil.

Os militares que ascenderam ao poder por meio de um golpe e a rasgar a Constituição viviam em uma época maniqueísta, onde a luta ideológica, por intermédio da propaganda e também da luta armada era a tônica. O mundo era dividido em dois mundos econômicos e políticos, que eram capitaneados pelos Estados Unidos (capitalista) e a União Soviética (comunista), atual Rússia. Os militares brasileiros e, consequentemente, sul-americanos, pertenciam ao “time” do mundo capitalista e, portanto, alguém assumir a condição de comunista, socialista ou trabalhista principalmente no cone sul era uma escolha arriscada e de muita coragem.

Naquela época, os militares eram os áulicos de um regime de força, ilegal e ditatorial. Perseguiam, incessantemente, a oposição de todas as formas e maneiras, a fim de evitar que o regime socialista efetivado pela União Soviética, em 1917, não se tornasse vitorioso principalmente na América Latina, região de inúmeras guerrilhas de esquerda e no chamado mundo capitalista “democrático”, de valores cristãos, liderado pelos estadunidenses, que, após a II Guerra Mundial, passaram a dominar, com mão de ferro, a economia mundial e a determinar como os países ocidentais deveriam agir para que as ideias e os conceitos socialistas fossem tenazmente e violentamente combatidos, bem como seus seguidores e propagadores reprimidos, a exemplo de Luís Carlos Prestes e Carlos Marighella, homens de extrema coragem pessoal e inabalável convicção ideológica e programática.

A história conta como esse processo foi concretizado, por meio de regimes de força, ditatoriais, de caracteres fascistas. Enquanto os militares administravam o Brasil, com um crescimento econômico recorde chamado de “Milagre Econômico” na década de 1970, o País também deixava de ser, definitivamente, rural, ao passar a ser urbano e industrializado, apesar de seu atraso no que concerne ao seu desenvolvimento social e à distribuição de renda e riqueza. No fim da década de 1960, no decorrer da década de 1970 e no início da década de 1980, os militares colocam em prática estratégias elaboradas inicialmente pela CIA estadunidense, juntamente com a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949, e o Serviço Nacional de Informações (SNI), fundado em 1964, para combater os partidos de esquerda e seus membros e militantes, chamados, pejorativamente, de “subversivos”, alcunha de época dada àqueles, como ensina o dicionário, que “pretendem destruir ou transformar a ordem política, social e econômica estabelecida” pelo status quo e o establishment em termos mundiais, controlados pelos Estados Unidos e países imperialistas, como a França e a Inglaterra.

O establishment impõe as regras de mercado aos países emergentes e aos não desenvolvidos, e, quando questionado, coloca em prática sua política externa, que não é realizada pela diplomacia, e, sim, pelo porrete, como ocorreu em Panamá, Venezuela — em abril de 2002, quando sequestraram e quase derrubaram o presidente socialista Hugo Chávez —, em Granada, Cuba, Afeganistão, lraque, Palestina, Vietnã, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Coreia do Norte, Camboja, Líbia, Sudão, Síria e muito outros países cujos povos, pobres e humildes, são obrigados a conviver com todo tipo de humilhação e violência perpetradas pelos que se consideram os donos do mundo — os Estados Unidos da América.

Foi nesse clima de radicalismo e de histerismo político e ideológico que os militares mandaram no Brasil. Órgãos de informações e repressão das Forças Armadas, a exemplo do DOI, Codi, Ciex, Cisa e Cenimar, além do SNl, e as polícias Militar e Civil passaram a determinar a política de combate aos subversivos, ou seja, à esquerda brasileira. Comunistas, socialistas e trabalhistas e até mesmo empresários nacionalistas e ativistas de inúmeros segmentos sociais, além de sindicalistas, bem como todos aqueles que, porventura, queriam um Brasil onde os brasileiros tivessem seus direitos civis e constitucionais garantidos eram combatidos severamente, de forma cruel e, quando da tortura, de maneira desumana — diabólica.

Lembro-me bem daqueles tempos, apesar de ser novo em idade e mesmo a não ter muito conhecimento, percebia como funcionava a política brasileira. No meio militar e também civil não se falava em política, bem como nos lares em geral e nas escolas onde fui matriculado. Quando se falava em política, falava-se discretamente. Quando se lia algum livro considerado “subversivo” pelo governo militar, lia-se de forma quase escondida. Era surreal ao tempo que dantesco, quando comparo com a democracia que temos hoje à custa de muito sofrimento e sangue derramado de brasileiros que pagaram com a vida para que o Brasil se tornasse democrático e, por conseguinte, civilizado. Inúmeros militares legalistas, democratas foram presos e expulsos de suas corporações, sem os direitos de carreira garantidos. Muitos militares foram mortos e torturados, principalmente os que aderiram a esquerda armada.

Livros como os escritos pelo economista Celso Furtado ou pelo educador Paulo Freire, dentre incontáveis autores, eram proibidos. Karl Marx, nem pensar. Existiam, sem sombra de dúvida, nebulosas repletas de raios e trovões a cobrir o sol da sociedade brasileira. Havia uma atmosfera de medo. Percebia-se também que as pessoas se autocensuravam e evitavam livros ou periódicos que publicassem, falassem ou lembrassem do presidente e líder trabalhista João Goulart e principalmente do político nacionalista Leonel Brizola, responsável pela Campanha da Legalidade que completou 52 anos este ano e principalmente por esse motivo odiado pelos militares golpistas por ter dividido o Exército, em 1961. Brizola amargou longos 15 anos no exílio, enquanto o grande presidente João Goulart, que anunciou as Reformas de Base no discurso da Central do Brasil somente voltou morto à terra brasileira, em 1976, pois exilado na Argentina.

Certa vez, ainda jovem, em 1978, na casa da minha namorada, em Brasília, comentei com o pai dela, que era major de Engenharia: “Estranho, o jornal (Jornal Nacional) fala de eleição no Congresso, diz que o general Figueiredo foi eleito, mas eu não votei. Que eleição é essa?” O militar me olhou com curiosidade e sua mulher demonstrou surpresa, pois ninguém falava de política e o major não ficou temeroso, era um homem politicamente moderado e educado, apenas riu e olhou para sua mulher, como se dissesse: “Olha o Davis, mesmo sem informação e conhecimento questiona o que ainda não sabe”. Olhei para ele, que me respondeu: “Vivemos em uma ditadura e ditaduras não permitem eleições diretas”. Só que eu sabia, apesar da pouca idade e de quase ninguém falar de política naquela época. Na minha escola já participava de reuniões políticas e foi o tempo em que comecei a ler os principais autores esquerdistas e trabalhistas, não somente os políticos, mas também os do campo da literatura, além de Karl Marx, autor que reli novamente. Porém, dessa vez, mais velho e atento.

Naquele tempo dos anos 1970 nada era questionado e quase ninguém protestava. O mundo não era globalizado e a informação era truncada, com “ruídos”, por causa da censura institucionalizada em forma de tesoura. Greves, nem pensar. Somente a partir de 1980, no ABCD paulista, surgiram os primeiros movimentos grevistas, verdadeiramente emblemáticos e de grandeza nacional. Apenas um partido, o MDB, questionava e lutava pela redemocratização do País, pois era a época do bipartidarismo. O MDB era o partido de oposição e mesmo assim passava por situações perigosas. A verdade é que o MDB era uma frente político-partidária, o guarda-chuva das esquerdas, dos moderados, dos nacionalistas e também dos conservadores legalistas e garantistas.

Havia um grupo do MDB que se destacava e que era conhecido como Grupo Autêntico, cuja principal bandeira era a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Os políticos autênticos: Cristina Tavares, Marcos Freire, Fernando Lyra, Alencar Furtado, Amaury Muller, Eloy Lenzi, Fernando Cunha, Francisco Amaral, Chico Pinto, Freitas Diniz, Getúlio Dias, Jaílson Barreto, Jerônimo Santana, Lysâneas Maciel, Marcondes Gadelha, Nadyr Rossetti, Paes de Andrade, Santilli Sobrinho, Walter Silva, Álvaro Lins, J.G. de Araújo Jorge, João Borges e Severo Eulálio, dentre outros.

A maioria dos militares aquartelados, oficiais inclusive, não sabia o que acontecia nos porões da ditadura militar, e se ouvia rumores se resguardava para não ser perseguida ou constrangida por quem estava a meter a mão na massa. Os chamados “gorilões” geralmente se afastavam do convívio da tropa e da vida social e comunitária dos militares. Calavam-se, pois guardavam a sete chaves os segredos de alcovas e de mortes, pois subordinados diretamente aos generais e coronéis que controlavam os órgãos de repressão, dentre eles todos os presidentes militares que conquistaram o poder de forma ilegal e traiçoeira em um período de 21 anos.  A maioria dos oficiais vivia na caserna, ocupada com suas responsabilidades, a pensar na educação de seus filhos e preocupada para que não faltasse o feijão de amanhã na mesa de seus lares.

Quem se meteu na chamada “Guerra Suja” e edificaram um sistema repressivo e mortal associado aos interesses econômicos e ideológicos dos Estados Unidos foram os líderes militares políticos que tentavam chegar, efetivamente, ao poder desde a queda de Getúlio Vargas em 1945, além de, evidentemente, militares de escalões mais baixos, doutrinados e fanáticos, pouco questionadores e que colocaram a “mão na massa”. Os primeiros, na verdade, preocupavam-se com a política desde 1930, quando Getúlio ascendeu ao poder e acabou com a política do Café com Leite. Os segundos eram paus-mandados, os tais “vibradores” no jargão militar, que participavam, entre outras organizações, do DOI-Codi e se envolveram com o sistema policial repressivo, cujo órgão mais conhecido é o Dops. Vale salientar também a cumplicidade e o constante apoio aos militares nos anos de chumbo por parte importante do grande empresariado, que compactou com os desmandos e a violência da ditadura, além de financiá-la. Não é à toa que alguns autores de livros de história passaram a chamar a ditadura militar de ditadura civil-militar.

Um adendo. Getúlio acabou com a política do Café com Leite porque tal regime privilegiava os estados de Minas Gerais e, principalmente, de São Paulo, principal estado opositor das mudanças no sistema político e no modelo econômico que a Revolução de 1930 implantara no País. O establishment quatrocentão lutava para retroceder os ponteiros das horas, a fim de favorecer os grandes comerciantes, os capitães da indústria, os cafeicultores e os pecuaristas, que dominavam a política nacional há séculos. Em 1932, essa burguesia de passado e alma escravocrata tentou voltar ao poder por intermédio da Revolução Constitucionalista, mas Getúlio acabou com aquela aventura elitista, que apenas visava impedir que o fundador do trabalhismo brasileiro iniciasse a revolução social e econômica que a maioria do povo brasileiro esperava. Esta é a verdade sistematicamente manipulada e distorcida pelos meios de comunicação de massa privados, além de ser ideologicamente deturpada por setores conservadores dos meios acadêmicos.

Eu vivenciei o que afirmo quando fiz o curso de Jornalismo na Escola de Comunicação (ECO), da UFRJ. Muitos professores, por causa de questões políticas e ideológicas que defendiam na época, faziam assertivas aos alunos que não condiziam com a verdade histórica dos fatos. As universidades federais e estaduais são elitizadas e somente passaram a abrir suas portas com a ascensão do presidente trabalhista Luiz Inácio Lula da Silva, que por intermédio de programas sociais permitiu que os pobres e os negros entrassem e se matriculassem aos milhares nas universidades públicas. Quando eu fui aluno da UFRJ no início dos anos 1980, dos quase 400 alunos dos oito períodos matriculados apenas dois, um homem e uma mulher, eram negros. Depois tenho de aguentar certas pessoas que insistem em afirmar que as políticas afirmativas não são necessárias. Seria cômico se não fosse trágico o pensamento tacanho, obtuso e reacionário dessa gente. Lula é um estadista e dessa forma vai ser reconhecido no futuro e na história — os lorpas e os pascácios a concordar ou não.

Volto aos militares. Para se ter uma ideia do envolvimento do setor empresarial com a repressão, a malfadada e desditosa Operação Bandeirantes (Oban), criada em 1969, pelo comandante do II Exército em São Paulo, general José Canavarro Pereira, foi também uma sugestão e proposta de civis, notadamente os grandes empresários parceiros e financiadores da repressão. Esses homens de negócios eram e são tanto de direita quanto os generais. Afinal de contas, a classe empresarial é a alma do capitalismo, e o que se sabe empresários visam o lucro. Se repressão e violência aumentassem seus lucros e os deixassem “em uma boa” com os militares e os policiais, por que então não apoiar o sistema ditatorial, cuja espinha dorsal era a Doutrina de Segurança Nacional desenvolvida pela Escola Superior de Guerra (ESG) e formulada no contexto da Guerra Fria, a ter como indutor dessa doutrina draconiana o National War College, dos EUA, que desde a Segunda Guerra Mundial influenciava os generais e marechais brasileiros, que finalmente chegaram ao poder no Brasil em 1964, por meio de um golpe de estado.

A ditadura nascida do antagonismo entre o capitalismo estadunidense e o comunismo soviético, com forte viés para a segurança nacional, base ideológica e ferramenta essencial para a existência e a longevidade de um regime cruel que durou 21 anos e chamado pelos direitistas de exceção. Até hoje muitos desses empresários ou seus descendentes estão atuar no mundo empresarial e na política nacional como se nada tivesse acontecido, a ocupar cargos importantes e de influência nos setores público e privado, e a mandar como autênticos coronéis que são em seus estados de origem e em suas empresas.

De formação conservadora, os militares, principalmente os oficiais, têm uma noção de brasilidade bastante desenvolvida. São sérios e profissionais, disciplinados e organizados. São, também, honestos. Tudo funciona dentro de uma instituição militar. Contudo, quando na Presidência da República, a ter que negociar diariamente com os civis, conviver com a diversidade e com os princípios que norteiam os mercados dos diversos segmentos econômicos de uma sociedade, o militar não compreendeu e se compreendeu não se esforçou para se adaptar aos novos tempos, pois vive em um mundo comunitário, quase que socialista, mesmo a ser o Exército uma instituição conservadora, defensora do capitalismo, que combateu, incansavelmente e cruelmente, a esquerda brasileira. Por isso, afirmo: o Exército é socialista em sua forma administrativa e social, mas defensor do sistema de mercado, do liberalismo econômico, liderado pelos países capitalistas, colonialistas e militarmente agressores.

A instituição verde-oliva é a guardiã armada do estado, seja ele democrático de direito ou não; seja o governo de esquerda ou de direita. Quando o Exército resolveu reprimir a esquerda, ele maculou seu nome e deixou muitos militares aborrecidos com alguns de seus pares que entraram na terrível aventura da repressão. O militar pode ser político. Ele é um cidadão como qualquer outro. Só que se quiser ser político que entre em um partido e dispute o pleito eleitoral de forma legal e democrática. Se eleito, toma posse do cargo e exerce seu mandato. Os Estados Unidos e a França já tiveram alguns generais na Presidência. O marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente democraticamente, em 1946. Agora, liderar e compactuar com um movimento armado para derrubar presidente constitucional não é, terminantemente, uma ação legal e não pode ser defendida e nem tolerada pela sociedade civil e suas instituições democráticas, que hoje têm meios e mecanismos legais para rechaçar qualquer tentativa de golpe de estado.

Quando eu era menino e jovem admirava meu pai e seus companheiros por serem honestos e terem uma carreira digna, apesar da possibilidade de uma guerra, mesmo a se tratar do Brasil, País que não participa de conflitos armados há muito tempo. Mas ficou esta imagem do Exército Brasileiro em minha retina e memória. A de ser uma instituição voltada ao bem-estar de quem a ela pertence. Os militares têm uma vida segura, trabalham para o estado, que é o grande empregador de qualquer país. Eles têm acesso ao estudo, à saúde, ao esporte, ao lazer e à moradia. Não recebem altos salários, mas eles também não são baixos, bem como as diferenças salariais entre seus membros não são exorbitantes, como deveria ser assim em toda sociedade e suas inúmeras categorias profissionais. Ressalto ainda que o Exército é também um dos maiores empregadores do Brasil.

Conhecem o País e, apesar de haver competição entre os oficiais, o que é natural, pois vivemos em uma sociedade competitiva, há respeito entre os militares.  Só há uma realidade a lamentar. Apesar de o Exército ser socialista no que tange à sua rotina e existência como instituição, ele é capitalista no que se refere à defesa do sistema de capitais brutal imposto pelos países colonialistas. Tanto que, no decorrer de sua história, combateu os socialistas e fez Luís Carlos Prestes sofrer. O Cavaleiro da Esperança, político gaúcho revolucionário de grande envergadura, fruto da farda do Exército.

Não somente Prestes foi duramente perseguido, porque das entranhas da Força militar saíram homens de caráter e grandeza de Apolônio de Carvalho, Nelson Werneck Sodré, Gregório Bezerra, Carlos Lamarca e Maurício Grabois, líder comunista que estudou na Escola Militar de Realengo e, posteriormente, expulso por causa de suas atividades políticas. Apolônio ingressou no Partido Comunista (PCB) e militou na Aliança Libertadora Nacional (ALN). Participou da Guerra Civil Espanhola ao lado dos socialistas e combateu os fascistas liderados pelo generalíssimo Francisco Franco. 

Posteriormente, o militar brasileiro entrou em combate contra os nazistas, como integrante da Resistência Francesa. No Brasil, entrou na clandestinidade, como membro do PCBR, para combater a ditadura militar. Militante do PT, Apolônio é um de seus fundadores. Nelson Werneck é uma das maiores referências do Brasil e em termos internacionais como pensador marxista e historiador, bem como Carlos Lamarca, Grabois e Gregório Bezerra foram massacrados pela repressão à guerrilha de esquerda. Os dois primeiros foram assassinados em emboscadas e o último torturado e agredido violentamente nas ruas de Recife quando de sua prisão. O barbarismo contra Gregório comoveu as pessoas que estavam nas ruas, pois o militar e militante comunista já idoso, todo ensanguentado, era puxado por uma corda amarrada em seu pescoço. Ação abjeta e infame, que jamais vai sair da memória daqueles que conhecem pelo menos um pouco da história do Brasil.
  
Talvez o socialismo seja tão bom que essa instituição centenária e fundadora da República tenha querido a construção de uma sociedade comunitária somente para ela. Eu ainda sonho com um estado de bem-estar social, socialista, apesar de saber da forte oposição dos poderosos setores reacionários da sociedade brasileira. Porém, o socialismo democrático, nos quais os estados nacionais são responsáveis pela efetivação das políticas públicas que atendam as necessidades básicas da população e que subsidiem a existência humana, no sentido de que são os seres humanos que se transformam em cidadãos trabalhadores, consumidores, pagadores de impostos e, portanto, entes vivos geradores de riqueza e renda, que sustentam o próprio estado e por isso querem dele atenção e respeito. Nada de neoliberalismo, que é o capitalismo selvagem em sua forma econômica de espoliação das sociedades, porque dissociado das questões humanas e imposto ao mundo, de forma globalizada, pelo Consenso de Washington em 1989, para atender os interesses dos ricos e dos muito ricos, mas que fracassou inapelavelmente com a crise internacional de 2008, porque são feitos de barro os “pés” de seus fundamentos.

Eu sou partidário do socialismo democrático e não das ditaduras socialistas, que são tão terríveis quanto às ditaduras direitistas e empresariais apoiadas pelos Estados Unidos na América Latina e em outros continentes. O tempo passou. Há 33 anos não convivo com a família militar, a se tratar da rotina, do dia a dia dos meus tempos de criança e primeira juventude. Mas também há muito tempo eu queria escrever algo sobre as impressões que tive na minha infância e adolescência sobre a forma comunitária de viver dos militares. Como se sabe, comunitário, comunidade, significam “estado do que é comum”, “comunhão”, “direito em comum”, “o corpo social”, “a sociedade” e “local por elas (pessoas) habitado”. Não sei como os militares ainda não perceberam esses fatos e realidades, no que concerne à rotina de suas vidas serem completamente comunitárias, apesar de a ideologia da maioria compactuar com os interesses do cruel e explorador sistema de capitais conhecido como capitalismo.

Os generais do Exército, bem como os da Marinha e da Aeronáutica, têm de se dedicar às suas responsabilidades profissionais, o que, seguramente, essas instituições armadas tem feito no regime democrático há quase três décadas. O nacionalismo da maioria dos militares deve ser direcionado às suas atividades, no que concerne à segurança geográfica do País, além da cooperação no que diz respeito à infraestrutura (pontes, estradas, contenção de encostas etc.) e ao combate a catástrofes naturais e às epidemias, por intermédio de hospitais de campanha, do atendimento médico e da concessão de medicamentos. Além disso, o Exército participa de ações de segurança em grandes eventos como a Rio +20 e no futuro próximo as Olimpíadas. A Força também faz a segurança das fronteiras e coopera quando requisitada em operações de combate ao tráfico de drogas, como ocorreu recentemente no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

Contudo, o Exército não deve mais incorrer em erro histórico como o foi o golpe militar de 1964, que, inclusive, manchou seu nome quando militares, muitos deles oficiais, puseram as mãos na lama com a conveniência dos cinco generais presidentes, que ocuparam, de forma inconstitucional, a Presidência da República. A tortura e o assassinato dos adversários políticos são crimes hediondos, inafiançáveis e sem data e tempo para prescrever. E os cinco generais presidentes sabiam desse processo, o que, sem sombra de dúvida, leva-me a dizer que a destruição de militantes, políticos e guerrilheiros de esquerda foi um processo estudado, organizado, promovido e efetivado pelo estado brasileiro controlado pelos generais e seus associados, exemplificados em parte do grande empresariado. A Doutrina de Segurança Nacional, a Lei de Segurança Nacional (LSN) e o Conselho de Segurança Nacional eram a “constituição” e o plenário de deliberação dos generais ditadores e que ocuparam durante 21 anos, ilegalmente e arbitrariamente, a Presidência da República.

A Lei da Anistia não afiança e não dá direito àqueles que cometeram crimes de sangue sejam acobertados, escondidos e esquecidos, como se nada tivesse acontecido. As gerações de militares pós-redemocratização não tem nada a ver com o processo draconiano efetivado por militares de um tempo que remonta à Guerra Fria, e que por intermédio da Lei de Segurança Nacional (LSN) edificaram um regime repressor e opressor e com o total apoio dos Estados Unidos. Militar com vocação política que entre em um partido e faça política. Que se apresente para debater as questões deste País. O Exército, porém, nunca mais vai poder rasgar a Constituição e, por conseguinte, intervir na vida civil para controlar, subjugar e tutelar a sociedade brasileira. Militar é militar. Sociedade civil é sociedade civil. Ponto.

Por fim, creio que os crimes da ditadura devem ser investigados, doa a quem doer, e os que participaram de crimes, como a tortura e os assassinatos devem ser punidos exemplarmente, como ocorreu, por exemplo, recentemente na Argentina. O Governo da presidenta Dilma Rousseff, o Congresso, o Judiciário e o Exército, sim, o Exército têm de desatar esse nó e encarar a questão de frente e com coragem, a fim de a nossa população e principalmente as famílias dos mortos e desaparecidos tenham o respeito que merecem do governo e da sociedade. Os brasileiros mortos e desaparecidos têm de ser historicamente e socialmente resgatados. Eles são entes humanos que existiram. O Brasil tem de ser passado a limpo para se tornar a casa e o lar de uma Nação civilizada, democrática e que pertença ao povo. Não há paz sem justiça. O Exército sabe disso para se integrar definitivamente à sociedade brasileira. É isso aí.






6 comentários:

HELIO disse...

Para Davis Sena Filho, sou militar da Turma Força Expedicionária Brasileira - FEB, formado aspirante-a-oficial em 1970 pela Academia Miltar das Agulhas Negras e concordo com você, mas não renego meus irmãos de farda.

Davis Sena Filho disse...

Prezado Hélio Borba, é uma satisfação tê-lo como leitor e sua opinião é respeitada. Se você concorda comigo, eu fico satisfeito e orgulhoso. Se você não renega seus colegas é porque és homem de caráter. Abraço e tudo de bom.

Henrique disse...

Vários pontos do post me fez lembrar meu pai.
Ele sempre me dizia que o golpe foi uma meia dúzia de generais que o mantinham por influencia estrangeira e outras coisas mais.
O que mais me marcou foi quando ele me disse: 'cuidado com a globo e o poderio americano, há uma relação muito direta com o golpe'.
Realmente, com arquivos e áudios da Casa Branca, o filme “O Dia que Durou 21 anos” revela apoio dos EUA ao golpe de 64.
Realmente, o golpe militar de 1964 serviu aos interesses – ideológicos, políticos e empresariais – dos barões da mídia.
Nada mais que isto!
Imaginem os 21 anos com a nossa imprensa opiniática e não esclarecedora!
Hoje, acredito que a institucionalidade das Forças Armadas é mais sólida do que os entreguistas e subservientes que passaram pelo país.
E o que é primordial: o povo está muito mais atento e participativo das ações no nosso Brasil.

Parabéns Davis - uma postagem para pensarmos muito e tirarmos só ensinamentos.

E, com sua licença, é uma satisfação, também, um comentário do Helio Borba/Aposentado Invocado.

Obrigado Davis.

Marcelo Migliaccio disse...

Brilhante análise.

Henrique disse...

No blog FONTE LEGÍTIMA/Helio Borba - 14 de outubro de 2013

"Denúncia revela suborno à alta cúpula do Exército antes do golpe de 64"

Otto Lima disse...

Como filho de praça da Marinha do Brasil, ex-aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro (Turma Sgt. Max Wolff Filho - 1996) e atualmente funcionário de carreira da Petrobras - cuja criação, aliás, foi consequência de uma mobilização popular da qual participaram militares como o Gen. Horta Barbosa - só tenho elogios para essa brilhante análise sobre a família militar. É fundamental separar o joio do trigo; neste caso, distinguir os torturadores e assassinos fardados a serviços de interesses alheios à Nação dos verdadeiros militares, aqueles que dedicam suas vidas à defesa da soberania nacional.