sexta-feira, 27 de novembro de 2015

CHEIRO

ESPAÇO BICO DE PENA — DAVIS SENA FILHO

A idade estava avançada. 88 anos. Pensava com seus botões: “a vida foi pródiga para comigo, apesar de ter de desatar o nó de muitos problemas”. Lembrava-se de muitas coisas de sua fase madura e de sua juventude; esta, para ele, tão curta quanto à vida das borboletas. Sua memória, no entanto, não conseguia captar sua infância e início da adolescência. Sentia um grande pesar por isso, pois queria, antes de morrer, resgatar sua voz infantil, as vozes de seus pais, irmãos e tios, os ruídos quase inaudíveis do sobrado onde nasceu, o ranger do assoalho, os cantos dos passarinhos no vasto quintal e principalmente os cheiros de sua infância emanados da cozinha, das flores do jardim, dos perfumes de sua mãe e dos braços sempre suados e gordurosos de Antônia, dublê de babá, cozinheira e contadora de histórias.

João Florêncio quando tentava trazer á tona sua memória olfativa, sentia o cheiro da morte, pois, quanto mais o homem procura lembrar seu passado, quanto mais busca as reminiscências de sua tenra idade, mais ele tem consciência que a vida está se esvaindo como areia fluindo na ampulheta. “Ah” – dizia – “os cheiros da minha infância são indefectíveis!”. À tardinha se dirigia à varanda que dava para os fundos do sobrado para melhor pensar no seu passado, e, ao mesmo tempo, julgar a si próprio perante a vida que levou, tendo como base suas relações pessoais.

Mas o que mais incomodava João Florêncio era realmente resgatar os cheiros da infância. O cheiro de café novo, de manga madura, de carne assada. Os cheiros de terra molhada, de maresia, de doces cozinhados em panela de barro sobre o fogão à lenha. Os cheiros de fronhas e de lençóis depois de lavados e engomados. João Florêncio, obviamente, convivia ainda com esses odores, que deixam de ser tão prazerosos na vida adulta. Adulto, ele bem sabia, os sentidos ficam em segundo plano, principalmente o olfato, que, para o equilíbrio biológico do homem, é tão essencial quanto à visão.


 João Florêncio percebia que depois de adulto os objetivos de almejar bens materiais, a dedicação à profissão e os problemas, importantes ou não, a serem resolvidos no dia a dia, faz do homem um animal mutilado quanto à sua própria natureza, retratada na capacidade ou não de utilizar seus sentidos. Para João Florêncio, se o homem usasse mais seus sentidos como os outros animais, talvez a sociedade humana não enfrentasse tantas crises, refletidas na falta de tolerância, que leva rapidamente ao egoísmo, responsável direto por ganância, guerras, doenças e mortes.

O resgate dos cheiros da infância para João Florêncio estava intrinsecamente ligado à própria continuação de sua vida, à sua condição humana. João Florêncio se preocupava, antes de morrer, em saber ao menos quem era ele. Queria e buscava esse conforto de saber se a vida valeu a pena, mesmo se a decepção, no final das contas, for imperativa.

Passavam-se os dias...

O ancião se desprendia, aos poucos, de tudo o que o rodeava. Estava fazendo um balanço de sua vida: amores, empregos, enfermidades, sua finada companheira, filhos, pais, amigos, satisfações e aborrecimentos, tristezas e alegrias. A vida fluía freneticamente em seu coração. Suas veias pulsavam como as de um recém-nascido. Bebia água sofregamente, pois seus lábios secavam e sua garganta ardia, como se ele tivesse ingerido pimenta. Era a vida se oferecendo com força, tal qual a terra quando entra em parto através das lavas e das labaredas dos vulcões.

“Os cheiros...” – pensava.

“As crianças são os únicos seres humanos que, por não estarem corrompidas, dominam plenamente seus sentidos” – acreditava.

“Como estão na fase das descobertas, amam, sem saber, seus sentidos, tirando deles prazer e experiência de vida” – ponderava.

Sabendo disso, João Florêncio começou a mapear em sua memória os lugares os quais freqüentava em sua infância. Estava resoluto em procurar e por fim achar os cheiros perdidos no tempo e no espaço que tanto o apeteceram. Precisava se encontrar com sua própria consciência e não mais sentir o vazio das vidas estéreis e sem sentido. O ancião percebeu que as pessoas vivem representando, até mesmo para se proteger, com a finalidade de conseguir sobreviver. É a fragilidade dos homens – o fracasso humano.
Para poder viver bem consigo mesmo, o velho procurava, no fim de sua vida, redimir-se perante a existência e seus semelhantes, mesmo que estes não saibam de sua procura.

“A consciência é íntima de quem a tem” – conjecturava.

“E os cheiros da minha infância trarão consciência à minha realidade, à minha verve, à minha história” – ressaltava

Para João Florêncio, o vetusto é somente o corpo deteriorado pelo tempo, o que não implica na sabedoria de quem se fez sábio e de quem, através da compreensão, sente compaixão pela pusilanimidade humana.

“Sabedoria é compreensão” – observava.

“Experiência é sentir para entender e reconhecer os outros, os cheiros” – murmurava, com convicção.

João Florêncio não queria chegar ao fim de sua vida sem reencontrar a paz e a pureza dos sentimentos e sentidos de sua infância. Queria morrer em paz. Apesar de ter levado uma vida decente em sociedade, achava que todo homem, de uma forma ou de outra, corrompe-se. Não é necessário matar, roubar ou cometer maledicências para não se corromper. A maioria dos homens se corrompe, até mesmo pela força da sobrevivência. E todos, bem intencionados ou não, já experimentaram, pelo menos uma vez, este amargo gostinho.

Levantou-se de sua poltrona, dirigiu-se ao quintal, perambulou por toda a extensão do vasto terreno pontilhado por plantas. Abriu a braguilha e ficou olhando sem muita convicção, quase desconcentrado, para a espuma que se formava no chão, por causa da urina. Urinou no pé de um limoeiro e sentiu o forte cheiro que exalava dos frutos e das folhas da árvore. Começou a rir baixinho e, paulatinamente, o riso foi aumentando de tom, até que João Florêncio, emocionado, chegou às lágrimas. O velho enxergou sua infância e cheirou sua vida.

PALAVRA LIVRE

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