ESPAÇO BICO DE PENA — DAVIS SENA FILHO
A idade estava avançada. 88 anos. Pensava com
seus botões: “a vida foi pródiga para comigo, apesar de ter de desatar o nó de
muitos problemas”. Lembrava-se de muitas coisas de sua fase madura e de sua
juventude; esta, para ele, tão curta quanto à vida das borboletas. Sua memória,
no entanto, não conseguia captar sua infância e início da adolescência. Sentia
um grande pesar por isso, pois queria, antes de morrer, resgatar sua voz
infantil, as vozes de seus pais, irmãos e tios, os ruídos quase inaudíveis do sobrado
onde nasceu, o ranger do assoalho, os cantos dos passarinhos no vasto quintal e
principalmente os cheiros de sua infância emanados da cozinha, das flores do
jardim, dos perfumes de sua mãe e dos braços sempre suados e gordurosos de
Antônia, dublê de babá, cozinheira e contadora de histórias.
João Florêncio quando tentava trazer á tona sua
memória olfativa, sentia o cheiro da morte, pois, quanto mais o homem procura
lembrar seu passado, quanto mais busca as reminiscências de sua tenra idade,
mais ele tem consciência que a vida está se esvaindo como areia fluindo na
ampulheta. “Ah” – dizia – “os cheiros da minha infância são indefectíveis!”. À
tardinha se dirigia à varanda que dava para os fundos do sobrado para melhor
pensar no seu passado, e, ao mesmo tempo, julgar a si próprio perante a vida
que levou, tendo como base suas relações pessoais.
Mas o que mais incomodava João Florêncio era
realmente resgatar os cheiros da infância. O cheiro de café novo, de manga
madura, de carne assada. Os cheiros de terra molhada, de maresia, de doces
cozinhados em panela de barro sobre o fogão à lenha. Os cheiros de fronhas e de
lençóis depois de lavados e engomados. João Florêncio, obviamente, convivia
ainda com esses odores, que deixam de ser tão prazerosos na vida adulta.
Adulto, ele bem sabia, os sentidos ficam em segundo plano, principalmente o
olfato, que, para o equilíbrio biológico do homem, é tão essencial quanto à
visão.
João Florêncio percebia que depois de adulto
os objetivos de almejar bens materiais, a dedicação à profissão e os problemas,
importantes ou não, a serem resolvidos no dia a dia, faz do homem um animal
mutilado quanto à sua própria natureza, retratada na capacidade ou não de
utilizar seus sentidos. Para João Florêncio, se o homem usasse mais seus
sentidos como os outros animais, talvez a sociedade humana não enfrentasse
tantas crises, refletidas na falta de tolerância, que leva rapidamente ao
egoísmo, responsável direto por ganância, guerras, doenças e mortes.
O resgate dos cheiros da infância para João
Florêncio estava intrinsecamente ligado à própria continuação de sua vida, à
sua condição humana. João Florêncio se preocupava, antes de morrer, em saber ao
menos quem era ele. Queria e buscava esse conforto de saber se a vida valeu a
pena, mesmo se a decepção, no final das contas, for imperativa.
Passavam-se os dias...
O ancião se desprendia, aos poucos, de tudo o que o
rodeava. Estava fazendo um balanço de sua vida: amores, empregos, enfermidades,
sua finada companheira, filhos, pais, amigos, satisfações e aborrecimentos,
tristezas e alegrias. A vida fluía freneticamente em seu coração. Suas veias
pulsavam como as de um recém-nascido. Bebia água sofregamente, pois seus lábios
secavam e sua garganta ardia, como se ele tivesse ingerido pimenta. Era a vida
se oferecendo com força, tal qual a terra quando entra em parto através das
lavas e das labaredas dos vulcões.
“Os cheiros...” – pensava.
“As crianças são os únicos seres humanos que, por
não estarem corrompidas, dominam plenamente seus sentidos” – acreditava.
“Como estão na fase das descobertas, amam, sem
saber, seus sentidos, tirando deles prazer e experiência de vida” – ponderava.
Sabendo disso, João Florêncio começou a mapear em
sua memória os lugares os quais freqüentava em sua infância. Estava resoluto em
procurar e por fim achar os cheiros perdidos no tempo e no espaço que tanto o
apeteceram. Precisava se encontrar com sua própria consciência e não mais
sentir o vazio das vidas estéreis e sem sentido. O ancião percebeu que as
pessoas vivem representando, até mesmo para se proteger, com a finalidade de
conseguir sobreviver. É a fragilidade dos homens – o fracasso humano.
Para poder viver bem consigo mesmo, o velho
procurava, no fim de sua vida, redimir-se perante a existência e seus
semelhantes, mesmo que estes não saibam de sua procura.
“A consciência é íntima de quem a tem” –
conjecturava.
“E os cheiros da minha infância trarão consciência
à minha realidade, à minha verve, à minha história” – ressaltava
Para João Florêncio, o vetusto é somente o corpo
deteriorado pelo tempo, o que não implica na sabedoria de quem se fez sábio e
de quem, através da compreensão, sente compaixão pela pusilanimidade humana.
“Sabedoria é compreensão” – observava.
“Experiência é sentir para entender e reconhecer os
outros, os cheiros” – murmurava, com convicção.
João Florêncio não queria chegar ao fim de sua vida
sem reencontrar a paz e a pureza dos sentimentos e sentidos de sua infância.
Queria morrer em paz. Apesar de ter levado uma vida decente em sociedade,
achava que todo homem, de uma forma ou de outra, corrompe-se. Não é necessário
matar, roubar ou cometer maledicências para não se corromper. A maioria dos
homens se corrompe, até mesmo pela força da sobrevivência. E todos, bem
intencionados ou não, já experimentaram, pelo menos uma vez, este amargo
gostinho.
Levantou-se de sua poltrona, dirigiu-se ao quintal,
perambulou por toda a extensão do vasto terreno pontilhado por plantas. Abriu a
braguilha e ficou olhando sem muita convicção, quase desconcentrado, para a
espuma que se formava no chão, por causa da urina. Urinou no pé de um limoeiro
e sentiu o forte cheiro que exalava dos frutos e das folhas da árvore. Começou
a rir baixinho e, paulatinamente, o riso foi aumentando de tom, até que João
Florêncio, emocionado, chegou às lágrimas. O velho enxergou sua infância e
cheirou sua vida.
PALAVRA
LIVRE
Nenhum comentário:
Postar um comentário